domingo, março 12, 2006

Outra Alma





Uma esmolinha, por favor.
Desculpe mas não tenho.

Olha lá és novo por aqui, não?
Sim.
Há muito tempo que andas assim?
Dois meses.
E eu á dois anos e não consigo dar volta a isto.
Onde dormes?
Onde calha.
E tu ?
Tento arranjar uma escadas, mas sou sempre corrido.

Uma moedinha, por favor.
Vai trabalhar malandro.

Uma esmolinha, s.f.f..
Tome 50c. É o que tenho.

Quando podes onde comes?
Na sopa dos pobres, nos Anjos.
E dão jantar?
Não, só almoço.
Mas tens de arranjar um cartão para lá entrares.
Como?
Na policia.
Na policia?
Sim, inscreves-te e ficas com foto e tudo.
E o dinheiro para a foto?
Eles tiram com uma Polaroid.
Que chique.

Posso comer mais um prato?
Aqui só á sopa e pão, por isso pode repetir as vezes que quiser.
Obrigado.
Eu não o conheço?
É a primeira vez que aqui venho.
Deve de ser de outro lugar.

Hei, está a ouvir? Acorde lá.
Estou a fazer algum mal?
Mal não está, mas aqui em frente á escola é capaz de não ser boa ideia!
Mas isto não é um jardim!?
Jardim público ou privado não é para estar aqui deitado.
Sentado ou então corda aos sapatos.
Os seus modos são assim para toda a gente?
Queres ir para a esquadra?
Pelo menos podia dormir esta noite.

Minha senhora, pode pagar-me uma sopa?
Sr. Jeremias, esta coisa está a incomodar-me.
Vá lá amigo tenha paciência, não pode estar aqui.
Mas só quero uma sopa !?
Tem dinheiro para a sopa?
Não.
Então o que é que quer que faça?
Tá bem pronto.

Olá como te chamas?
Luís Luís
Bonito nome o teu !?
O que és que tens?
Estás doente?
Doente não estou, só com um pouco de fome.

Mãe anda cá.
O Luís Luís está com fome.
Quem é o Luís Luís?
É o meu novo amigo.
É o Sr. O novo amigo?
Muito prazer.
Tão novo e já assim?
Espero que seja só uma passagem para dias melhores.

Zeca Peres

sexta-feira, março 10, 2006

3 Segundos

O jantar está divinal, meu caro Luís Luís
Está tudo com grande requinte.
Obrigado Dr.º
Mais uma vez, obrigado pela recepção.

Menino, a limusine está pronta.
Mais três minutos e partimos.

Bom dia comandante.
Podemos ir?
Boa viagem.
Que se passa?
A torre de controle ainda não deu autorização.

É o último grito de luxo.
Sauna e spa, sala de estar, quarto de vestir, uma casa de banho com três compartimentos: duas retretes, uma entrada e uma sala de reuniões, além do habitual quarto de dormir.
Era tão grande que precisava de uma guia para me orientar.
Apreciei os belos lustres, o mármore resplandecentes e as torneiras banhadas a ouro.
Para uso dos ocupantes havia roupões, quimonos chinelos, secadores de cabelo, sais de banho-tudo o que pudesse ser preciso.

Que belo passeio, com este mar é uma beleza.
Tens um belo iate, camarada.
Quando é que lhe mudas o nome?
Porquê mudar?
Sporting?
Isto é nome de iate?
Se fosse Benfica era bem pior.
Vamos dar um mergulho meninas?

Que se passa?
Levantas-te da cama todo suado e nu?
Não me diga nada mãe!

Zeca

terça-feira, março 07, 2006

As mulheres da minha geração

Imagem


É o único tema em que sou radical e intolerante, no qual não escuto argumentações:

As mulheres da minha geração são as melhores e pronto.

Hoje têm quarenta e picos, inclusive cinquenta, e são belas, muito belas, porém também serenas, compreensivas, sensatas e sobretudo diabolicamente sedutoras, isto, apesar dos seus incipientes pés-de-galinha ou desta afetuosa celulite que capitoneam suas coxas, mas que as fazem tão humanas, tão reais.

Formosamente reais.

Quase todas, hoje, estão casadas ou divorciadas, ou divorciados e recasadas, com a intenção de não se equivocar no segundo intento, que às vezes é um modo de acercar-se do terceiro e do quarta intento.
Que importa?
Outras, ainda que poucas, mantém um pertinaz celibatarismo e o protegem como a uma fortaleza sitiada que, de qualquer modo, de vez em quando abre suas portas a algum visitante.

Que belas são, por Deus, as mulheres da minha geração!

Nascidas sob a era de Aquário, com a influência da música dos Beatles,de Bob Dylan, de Lou Reed, do melhor cinema de Kulbrick e do início do"boom" latino-americano, são seres excepcionais.
Herdeiras da "revolução sexual" da década de 60 e das correntes feministas, que entretanto receberam passadas por vários filtros, elas souberam combinar liberdade com coqueteria, emancipação com paixão,reivindicação com sedução.
Jamais viram no homem um inimigo, apesar de que lhe cantaram umas quantas verdades, pois compreenderam que se emancipar era algo mais que colocar o homem para esfregar o banheiro ou trocar o rolo de papel higiênico, quando este tragicamente se acaba, e decidiram pactuar para viver em dupla, essa forma de convivência que tanto se critica, porém, que com o tempo, resulta ser a única possível, ou a melhor, ao menos neste mundo e nesta vida.

São maravilhosas e têm estilo, mesmo quando nos fazem sofrer, quando nos enganam ou nos deixam.

Usaram saias indianas aos 18 anos, enfeitaram-se com colares andinos,cobriram-se com suéteres de lã e perderam sua parecença com Maria, a Virgem,em uma noite louca de sexta-feira ou de sábado, depois de dançar Elraton, de Cheo Feliciano, na Teja Corrida ou em Quebracanto, com algum amigo que lhes falou de Kafka, de Gurdjieff e do cinema de Bergman.
No fundo de suas mochilas havia pacotes de Pielroja, livros de Simone de Beauvoir e fitas de Victor Jara, e ao deixar-nos, quando não havia mais remédio senão deixar-nos, dedicavam-nos aquela canção de Héctor Lavoe, que é ao mesmo tempo um clássico do jornalismo e do despeito, e que se chama Teu amor é um jornal de ontem.
Falaram com paixão de política e quiseram mudar o mundo, beberam rum cubano e aprenderam de cor canções de Silvio Rodriguez e Pablo Milanez, conheceram os sítios arqueológicos, foram com seus namorados às praias,dormindo em barracas e deixando-se picar pelos pernilongos, porque adoravam a liberdade e, sobretudo, juraram amar-nos por toda a vida, algo que sem dúvida fizeram e que hoje continuam fazendo na sua formosa e sedutora madureza.

Souberam ser, apesar da sua beleza, rainhas bem educadas, pouco caprichosas ou egoístas.
Deusas com sangue humano.

O tipo de mulher que, quando lhe abrem a porta do carro para que suba,se inclina sobre o assento e, por sua vez, abre a do seu acompanhante por dentro.

A que recebe um amigo que sofre às quatro da manhã, ainda que seja seu ex-noivo, porque são maravilhosas e têm estilo, ainda quando nos façam sofrer, quando nos enganam ou nos deixam, pois seu sangue não é tão gelado o suficiente para não nos escutar nessa salvadora e última noite, naqual estão dispostas a servir-nos o oitavo uísque e a colocar, pela sexta vez, aquela melodia do Santana.
Por isso, para os que nascemos entre as décadas de 40 e 60, o dia damulher é, na verdade, todos os dias do ano, cada um dos dias com suas noitese seus amanheceres, que são mais belos, como diz o bolero, quando está você.

Que belas são, por Deus, as mulheres da minha geração!

Zeca Peres

domingo, março 05, 2006

Hino á vida

A vida é uma oportunidade, agarra-a
A vida é beleza, admira-a
A vida é bem-aventurança, saboreia-a
A vida é um sonho, faz dele uma realidade
A vida é um desafio, enfrenta-o
A vida é um jogo, joga-o
A vida é preciosa, cuida dela
A vida é uma riqueza, conserva-a
A vida é amor, desfruta-o
A visa é um mistério, penetra-o
A vida é promessa, cumpre-a
A vida é tristeza, vence-a
A vida é combate, aceita-o
A vida é uma tragédia, abre-lhe os braços
A vida é uma aventura, ousa-a
A vida é felicidade, merece-a
A vida é um hino, canta-a
A vida é a vida, defende-a

Zeca Peres

sábado, março 04, 2006

1958

Um Agosto como há muito não se via.
Um calor de torrar, com os dias a amanhecerem enevoados.
Lá para as 10 horas o astro rei rompe em toda a sua magnitude.
Adultos crianças e os respectivos cãozinhos mais o farnel do costume,
invadem o areal á procura de paz.
Por aqui os dias não tem fim.
Logo pela manhã as romãzeiras pedem uma visita.
O tanque e as suas águas quentes um mergulho.
O galo e as suas damas no come come do costume.

Onde vais?
Não sei.
Não sabes?
Não.
O que é que estás a esconder?
Esconder?
Nem tenho bolsos?

Minha senhora, está lá fora o Sr. O senhor Isqueiro.
Ele que entre.

Bons dias minha senhora.
Bons dia, algum problema?
Não, não, só gostaria de levar o menino Luís Luís ao monte.
Se ele estiver de acordo, tudo bem.

Olá Sr. Isqueiro! Bom dia.
Bom dia, estava aqui a pedir á senhora sua mãe se o deixava ir ao monte.
Não sei!
Hoje acordas-te com o não sei na boca.
Na língua s.f.f.
Mas afinal o que é que se passa?
Sonhei com uma coisa que nunca tive.
Sabe que os sonhos são uma porta para os porquês?
E serão muitos?
Quando é que vai ao monte?
Antes do almoço.
Posso ir mãe?
Leva o chapéu, olha o sol.
Não é um chapéu é uma capeline.

Adoro o meu chapéu de palha.
Neste espaço de tantos chaparros e oliveiras pareço um artista de cinema.
O mundo é meu.
Cada pedra cada oliveira são as minhas companheiras de brincadeiras.
O canto das aves ecoam pelo cerrado , os coelhos, as perdizes, os lagartos, as cegonhas são os figurantes da minha viagem.
Aqui os dias são anos.
Não quero sair daqui.
Não quero crescer.
Não quero saber se existe vida lá fora.

Está muito sossegado?
Sr. Isqueiro diga-me lá uma coisa:
O Sr. Alguma vez sonhou com uma coisa que nunca teve?
Que eu me lembre não, ainda mais a mais com a minha idade.
Porque é que as pessoas tem que ter idade?
Lá está menino com perguntas difíceis.
Ajuda-me a não crescer?
Só lhe posso dar o que sei para que não esqueça a sua meninice.

É por estas e por outras que não quero sair daqui.

Então mana, tudo bem?
Tudo e tu?
Menos mal, o Luís Luís?
Foi ao monte mais o Sr. Isqueiro.
Deve de ter tido um sonho daqueles......
De que é que estás a falar?
Do Luís Luís, sonhou com uma coisa que nunca teve.
E o que foi, sabes?
Não, para além de que acordou com o “não“ sei na boca.
Bom quando ele chegar, que passe lá por casa.
Vou á cidade queres alguma coisa?
Quero.
Não te esqueças de regressar.
Alguma vez!!!!!!!!!

Os caminhos de cabras são as auto-estradas do cerrado.
O formigar é mais que muito.
Andam em fila num vaivém que mais parecem uma só.
Será que pensam?
Será que dormem?
Será que tem frio?

Mãe, as formigas tem frio?
E tu?
Eu tenho fome.
Depois de lanchares vai a casa do teu tio João.

Luís Luís vamos ao jardim?
Agora não vou a casa do meu tio.
Vais lá ter?
Vou.

Olá tia.
Olha o meu Luís Luís, que olhar mais brilhante meu querido.
É do sol e das formigas.

Sabe se as formigas tem frio?
Todos os animais tem frio, fome, sede, e........
E..........?
Bem, também tem amor.
Os galos e os coelhos devem de ser os maiores.
O teu tio foi á cidade.
Então vou ao jardim e já volto.

Olha o teu tio!
Olá tio.
Que é que me queria?
Então que sonho foi esse?
Aqui as noticias correm depressa.
Não queres dizer?

A paixão da minha vida.
Uma trotinete.
Podes ter uma, mas com uma condição!
Qual?
Sempre que andares de Trotinete tens de andar de vermelho vestido.

Ela é linda, simplesmente deslumbrante até farol tem.

Muito bem, vejo que és um homem de palavra.
Vermelho na pele mas verde no coração, tio.

Luís Luís, um homem muda de tudo menos de clube.

Zeca Peres

Dias ou Dia ?

Bom dia Mãe!
Como é que está o tempo?
Mais para chuva que sol e não há água nem luz.
E agora?
Agora?
Água fria que enrijece.

O que me vale é que é a descer (moro num 6º andar)

Bom dia Sr. Miguel
Bom dia Luís Luís, hoje vou ao tribunal!
Problemas?
Não, sou apenas testemunha.
Adeus e boa sorte.

Bom dia D. Leticia.
Bom dia, tenha cuidado onde põe os pés que isto está escorregadio.
Obrigado.

Que chatice, e agora?

Deixe lá amigo, dizem que é dinheiro a voar!
Cabrão de pombo.

Desculpe, posso servir-me do W.C.?

Não, está a variada.

Bom dia minha senhora, gostaria de vos mostrar um catálogo de beleza, posso?
Não, não pode, pois estou de saída.
Então a que horas é que posso passar?
Não tenho hora de chegada.
Obrigado e até breve.

Mais um prédio, mais uma porta e nada.
Isto está difícil.

Um café e água, s.f.f.
Não servimos ás mesas, tem de ir ao balcão.

Hum querem ver?????

Amigo desculpe, sabe-me dizer onde fica a Antero de Quental?
Desculpe mas não sou da cidade.

A minha mãe bem me disse que isto hoje estava mais para chuva que sol.
Chove e eu sem guarda chuva.
Chiça que manhã!!!!!!!!

Talvez ali no metro encontre.
Olha o guarda chuva a 5e
É pró menino e prá menina

Posso ver um?
Poder pode, mas só tenho dos pequenos, pra senhora.
Do mal o menos, dê cá um.
Quanto é?
7.50€
7.50€ ?
Sim 7.50€ está mouco ou quê?
Mas á dois minutos atrás eram a 5€ ?
Pois eram. Mas estes são de licra.
Está bem dê cá um.
Só tem esta cor? (lilás)
É o que há!

Tenho os sapatos encharcado a Alma feita em nada e.........

Táxi.......
Bairro das colónias, s.f.f.
Amigo, estou quase na hora da troca, não dá para ir tão longe.
Não dá ?
Desculpe mas não dá.
Então deixe-me no Marquês.
Pode ser ao pé do Tivoli?
Ok! Tudo bem.

Cuidado aí..........pronto, já está.
E agora como é?
O Sr. É testemunha que eu vinha na minha faixa.
Está bem, está bem, telefone-me para o Bairro das Colónias.

Zeca Peres

Coca & Rissol

Queres alguma coisa da rua?
Sim, se passares pelo SNI traz o catavento deste mês.
Um beijo, até já.

Boa tarde, desejo uma cola e um rissol se faz favor.
Concerteza
Desculpe, mais uma garrafa de água.

Está um belo fim de tarde, límpido como à muito não se via.
Passo o olhar em redor e vejo um gato a olhar para mim.
Faço-lhe uma festa e deita-se aos meus pés.

Desculpe sabe de quem é o gato?
Sei, é do meu patrão.
Sabe uma coisa?
A cadeira onde está sentado é o ninho dele para descansar.
Peço a conta, pago levanto-me e saio.
Dou três passos olho para trás e vejo o gato a saltar para o ninho dele.

Subo a Av., acendo um cigarro e no meio dos pensamentos umas vozes chamam-me
á atenção.
No meio da relva estavam sentados quatro crianças.
Talvez o mais novo com 8 anos e o mais velho 14.
Entre eles uma menina.

Dirijo-me a eles e sento-me na borda da reunião.
Posso?
Quem és tu?
Eu? Ninguém, só me apeteceu estar aqui..
Hum.... o que fazes?
Sou técnico de cinema.
Quantos anos tens?
54
E tu?
12
E eles?
Entre os 9 e os 14

Desculpem, mas o que é que estão aqui a fazer?
Não vê?
Ver vejo, mas........
Mas o quê?
Isso?
Isto?
Sim, isso!
Cola.
Cola?
Cola.
Há quanto tempo estão aqui?
Há prá aí uma meia hora.
Mas ó cota, isto é algum interrogatório ou quê?
Nada disso, só penso é que estão a deitar a vida para o esgoto!
Esgoto é a própria vida, senhor.
Já agora como é que se chama?
Luís Luís
Assim com dois Luíses?
Assim mesmo.
Tens filhos?
Dois e dois netos?
Sortudo e o que fazem?
Vivem a vida como ela é.
Não, os netos!
Esses estão a estudar, o mesmo deveria suceder convosco.
Connosco? Isso é outra conversa!
Não vão à escola?
Não.
Não?
Não.
Mas, os vossos pais o que é dizem?
Os nossos pais? Que pais?
Todos vivemos com a Lua e alimentamo-nos do Sol.

Zeca Peres